sábado, 17 de maio de 2008

Introdução aos fundamentos da Matemática - Prof. Dr. Newton Costa

COSTA, Newton C. A. da. Introdução aos fundamentos da Matemática. São Paulo: Hucitec, 1977.

FILOSOFIA DA MATEMÁTICA

A filosofia da matemática busca:
i) caracterizar e explicar o estado presente da evolução da matemática, justificando-o criticamente;
ii) clarificar e explicitar os conceitos e os princípios básicos da matemática (fundamentos da matemática).

Há três correntes principais:
- logicismo
- intuicionismo
- formalismo

Origens históricas (início do século XIX)
- Aritmetização da Análise (fundamentação do conceito de número real). (Weierstrass, Dedekind).
- Axiomatização da Geometria (a geometria não como o estudo do espaço real, mas como estrutura lógica abstrata). (Hilbert).
- Lógica Matemática (Boole).
- Fundamentação lógica para as disciplinas dedutivas (Peano).
- Teoria dos conjuntos (Cantor).

Fundadores do logicismo: Bertrand Russell (Principia Mathematica, em parceria com Whitehead) e Gottlob Frege (Fundamentos da Aritmética).
“A matemática reduz-se à lógica.”
Segundo Russell: “A matemática e a lógica, historicamente falando, têm sido consideradas disciplinas distintas. A matemática achava-se relacionada com as ciências e a lógica com o pensamento. Todavia, ambas se desenvolveram no sentido de a lógica tornar-se cada vez mais matemática e a matemática cada vez mais lógica. Em conseqüência, é impossível, agora, traçar linha divisória entre ambas: são, de fato, uma só disciplina.”
A tese logicista compõe-se de duas partes:
i) toda idéia matemática pode ser definida por intermédio de conceitos lógicos;
ii) todo enunciado matemático verdadeiro pode ser demonstrado a partir de princípios lógicos, mediante raciocínios puramente lógicos.
Russell, através da teoria dos conjuntos e da lógica simbólica, mostrou como definir os conceitos primitivos de Peano em termos puramente lógicos, além disso, demonstrou os postulados de Peano por meio de princípios lógicos.

Conceitos primitivos de Peano: número natural, zero, a relação “sucessor de”.
Axiomas de Peano:
Zero é um número natural.
Todo número natural tem um sucessor e este também é um número natural.
Zero não é o sucessor de nenhum número natural.
Dois números naturais que tiverem o mesmo sucessor são iguais
Se zero possuir uma propriedade P, e se do fato de um número natural qualquer n possuir P decorre que o sucessor de n também a possui, então todo número natural possui a propriedade P (axioma da indução).

Paradoxo de Russell
Consideremos o conjunto A formado por todos os conjuntos que não pertencem a si mesmos. Pelo princípio do terceiro excluído, A pertence ou não pertence a A (ou exclusivo). Suponhamos que A pertence a A, então, como A é o conjunto de todos os conjuntos que não pertencem a si mesmos, A não pode pertencer a A. Admitamos, então, que A não pertença a A, logo, de acordo com a definição de A, este conjunto deve pertencer a si mesmo, o que é uma contradição.
Diversos outros paradoxos surgiram e provocaram uma crise profunda na lógica e na matemática. Para eliminar os paradoxos, Russell criou a teoria dos tipos lógicos, segundo a qual “tudo que envolve toda uma coleção não pode ser membro desta coleção” (princípio do círculo vicioso). Por esta teoria as diversas entidades de que trata a lógica são dispostas numa hierarquia de tipos distintos e em cada tipo superior ao tipo zero distingue-se uma nova hierarquia de ordens. Nesta teoria não tem sentido um conjunto pertencer a si mesmo e não existe uma classe universal. A teoria dos tipos tem um caráter restritivo para a matemática que foi contornado por Russell através do axioma da redutibilidade, segundo o qual para toda propriedade de ordem maior que zero existe uma propriedade de ordem zero que lhe é equivalente, ou seja, todo objeto que possuir uma propriedade possui a outra e reciprocamente.

Crítica do logicismo
O axioma da redutibilidade afirma a existência de certas propriedades, constituindo uma hipótese sobre o mundo real, e não tem, pois, caráter lógico estrito, dado que as leis lógicas devem ser independentes deste ou daquele fato relativo ao mundo real, em particular, da existência de certas propriedades implicadas pelo axioma. E, posto que o sistema lógico de Russell e Whitehead almeja reduzir a matemática à lógica, uma suposição como o axioma da redutibilidade, pouco evidente e logicamente mal fundamentada, constitui sério defeito. Daí se afirmar que, na verdade, a matemática não foi reduzida à lógica.
Também o axioma do infinito, “se n for um número cardinal finito qualquer, então existe no universo pelo menos uma classe de indivíduos que tem n elementos”, é apresentado como hipótese plausível sobre o mundo real e não possui, evidentemente, caráter lógico estrito, pois do ponto de vista lógico nada parece implicar que não se possa dar justamente o oposto. A lógica, por si só, mostra-se impotente para fundamentar o axioma do infinito.
O axioma da escolha ou de Zermelo estabelece que “dada uma classe de conjuntos não vazios e, dois a dois, sem elementos comuns, existe pelo menos uma classe que tem exatamente um elemento em comum com cada um dos conjuntos dados”. Este axioma é essencial para se demonstrar vários resultados importantes da matemática e acha-se sujeito a reparos similares aos referentes ao axioma do infinito.
Acrescente-se que comumente se faz matemática tratando-a como livre criação da inteligência humana, ligada historicamente ao mundo real, mas, na verdade, independente, em algum sentido, desse mundo. Um investigador do mundo natural pode aplicar a matemática no seu estudo, porém, enquanto perquirição pura, a matemática independe dessas aplicações, pelo menos teoricamente. É justamente o contrário que se quer fazer no logicismo: os axiomas e os princípios propostos pelos logicistas são sugeridos como se referindo ao mundo real, como constituindo, no mínimo, hipóteses razoáveis sobre o universo, ou, talvez, sobre a forma de nossas relações com o universo.
A redução da matemática à lógica só teria sentido se fosse completa e apresentasse vantagens, o que não se dá, porque os logicistas tiveram que apelar para princípios extra-lógicos em sua tentativa de redução. Também no domínio da lógica têm surgido ao longo do tempo paradoxos e dúvidas, de modo que o logicismo não oferece quaisquer vantagens para a matemática.
Todavia o logicismo incrementou o progresso da lógica simbólica e evidenciou que a matemática e a lógica são disciplinas intimamente ligadas entre si, na realidade inseparáveis.

O finitismo de Kronecker
Kronecker admitia que, em tese, a aritmetização da análise, reduzindo-se tudo a números naturais, era correta. Porém, não aceitava as teorias de Weierstrass e de Dedekind a respeito dos números reais, frisando que essas teorias implicavam a existência de conjuntos infinitos como entidades realizadas, ou seja, de infinito atual, dado. Kronecker pensava que, por exemplo, o conjunto dos números naturais 0, 1, 2, 3, ..., que é infinito, não deve ser concebido como algo realizado, completamente dado. Ao contrário, existe um primeiro elemento e uma lei de formação, que consiste na adição de uma unidade a cada número para se obter o seguinte, de modo que podem ser obtidos tantos elementos quantos desejarmos do referido conjunto, embora jamais possam ser construídos todos esses números. Uma coleção infinita, como algo acabado, como totalidade composta de objetos existentes e distintos, parecia uma concepção matemática ilícita aos olhos de Kronecker. As coleções infinitas, para ele, são infinitas apenas potencialmente, e só as classes finitas podem, em princípio, ser encaradas como realizadas, inteiramente dadas. Por conseguinte, os números reais, segundo a conceituação usual, não existiam para Kronecker, que tentou edificar uma teoria própria das diversas categorias numéricas, sacrificando muitos pontos das teorias habituais. Por tudo isso, a tese de Kronecker chama-se finitismo.
Kronecker afirmou: “Deus nos deu os números naturais, e o resto é obra dos homens”. Com isto queria dizer que, em matemática, tudo deveria ser intuitiva e efetivamente construído pelo matemático a partir dos números naturais, tidos como claros e intuitivos. Kronecker não aceitava como válidas certas demonstrações de existência da matemática tradicional. É comum inferirmos, por exemplo, que um número x existe porque sua não existência implicaria em contradição. Pelo princípio do terceiro excluído conclui-se que x existe. Para Kronecker, todavia, a afirmação de que x existe não tem outro significação a não ser a de que x foi construído, foi calculado, de modo que a aplicação do princípio do terceiro excluído não provaria nada, o que evidenciaria que a lógica formal clássica seria inapropriada para a matemática.
Kronecker foi um adversário feroz de Cantor, sustentando que as concepções deste constituíam teologia, misticismo ou o que se queira, menos matemática. As idéias de Kronecker quase não tiveram repercussão entre seus contemporâneos, possivelmente pelos importantes resultados obtidos a partir da teoria dos conjuntos de Cantor e da teoria dos números reais de Weierstrass e Dedekind. Outros matemáticos como Poincaré, Borel e Lebesgue defenderam teses análogas às de Kronecker. No fundo dessas disputas encontra-se o problema da existência em matemática: mediante o axioma da escolha prova-se a existência de certos entes, sem, no entanto, termos meios de efetivamente poder construí-los. Tais entidades, idealmente definidas pelo axioma de Zermelo, não são aceitas pelos matemáticos de tendências similares às de Kronecker. Quem levou as teses de Kronecker ao extremo, elaborando a filosofia da matemática conhecida como intuicionismo, foi o geômetra holandês Brouwer.

Intuicionismo
Para Brouwer os paradoxos da teoria dos conjuntos são sintomas de um mal profundo de que padece a matemática e se faz necessária uma remodelagem completa e radical desta ciência. Brouwer advoga que a lógica tradicional originou-se da consideração de conjuntos finitos e não pode nem deve ser aplicada sem cautela em matemática, onde aparecem conjuntos infinitos (tão somente em estado potencial).
Brouwer insiste que a matemática não se compõe de verdades eternas, relativas a objetos intemporais, metafísicos, semelhante às idéias platônicas. Em contraposição, com base em pressupostos pragmáticos, ele procura demonstrar que o saber matemático escapa a toda e qualquer caracterização simbólica e se forma em etapas sucessivas que não podem ser conhecidas de antemão. A matemática, em resumo, pertence à categoria das atividades sócio-biológicas e se destina a satisfazer certas exigências vitais do homem. A matemática, para Brouwer, é antes uma atividade do que uma doutrina. De acordo com Brouwer, o matemático não descobre as entidades matemáticas; é o próprio matemático quem cria as entidades que estuda, ou seja, a expressão “A existe” só pode significar, em matemática, “A foi construído pela inteligência humana”. A atividade do matemático, portanto, cria e dá forma aos entes matemáticos. O matemático intuicionista, enquanto matemático, não se oporá a qualquer filosofia que sustente que o espírito humano, em sua atividade criadora, reproduza os seres de um mundo transcendente, mas considerará semelhante doutrina como demasiadamente especulativa para servir de fundamento às matemáticas puras. O âmbito de investigações da matemática intuicionista restringe-se, tão só, aos números naturais e a outras construções similares efetuadas pelo matemático, tendo por base, necessariamente, a intuição (uma intuição de caráter racional, nada tendo de místico).
O intuicionismo nega, também, que o princípio do terceiro excluído (ou princípio do tertium non datur) tenha valor universal, e rejeita o célebre método usual de demonstração por meio de redução ao absurdo, de enorme aplicação no campo da matemática clássica. Daí, inúmeras anomalias aparecerem na lógica e na matemática intuicionistas.
A lógica, para Brouwer, não é o fundamento da matemática, segundo pretendem os logicistas. Dá-se precisamente o oposto: as leis lógicas (aplicáveis no domínio matemático) derivam-se da matemática, ou, melhor, da linguagem matemática. E como Brouwer acha que a atividade matemática independe da linguagem, isto é, da maneira pela qual expressamos as verdades dessa ciência, conclui ele, singularmente, que as leis lógicas não constituem fenômeno matemático e, sim, fenômeno etnográfico.
A matemática, de acordo com o intuicionismo, originou-se, historicamente, da experiência, através dos sentidos. Mas na sua estruturação final e rigorosa, é puramente intuitiva e baseada na noção de número natural, independendo das ciências ou da filosofia. Aliás, em qualquer outra atividade intelectual já encontramos explícita ou implicitamente conceitos matemáticos. A atividade matemática não pressupõe qualquer outra, mas, sim, está na base dessas outras. Em síntese, do ponto de vista de seus fundamentos, a matemática é auto-suficiente.
Há enormes diferenças entre a matemática criada pelos intuicionistas e a matemática tradicional. Embora o desenvolvimento da aritmética elementar seja semelhante, no tocante à teoria dos números reais e à teoria dos conjuntos apenas pequena parte das concepções tradicionais permanece válida. Resultados do cálculo diferencial e integral, por exemplo, diferem amplamente. Por outro lado, os paradoxos aos quais nos referimos anteriormente são imediatamente eliminados pela diretriz construtivista do intuicionismo.

Crítica do intuicionismo
A crítica intuicionista da matemática tradicional, tão destrutiva e severa, obrigou os especialistas em fundamentos da matemática, de tendências menos radicais, a desenvolverem métodos novos, na esperança de reabilitarem as teorias clássicas. Isto se deu, por exemplo, com a doutrina formalista, que progrediu grandemente motivada pelas suas polêmicas com o intuicionismo.
Dois reparos geralmente são feitos ao intuicionismo.
O primeiro consiste em se observar que a concepção brouweriana quase torna impossível a matemática como ciência. Insistindo demasiadamente nos caracteres intuitivo e construtivo das indagações matemáticas, bem como no papel secundário da linguagem e do simbolismo em geral, o intuicionismo transforma essas indagações em atividades estritamente individuais, parecendo bastante difícil explicar como elas não degeneram em elucubrações subjetivas. A ciência deve ter caráter social e, por isso mesmo, deve-se mostrar objetiva, pelo menos em ampla medida. Levando-se a tese intuicionista ao pé da letra, chega-se à conclusão de que, surpreendentemente, cada pessoa tem sua "própria matemática". Estas matemáticas pessoais e subjetivas, todavia, pelo menos na aparência e talvez por motivo de estrutura psicológica, coincidem em seus traços fundamentais.
O segundo reparo consiste em se sublinhar os aspectos paradoxais de algumas concepções intuicionistas. Segundo os brouwerianos, por exemplo, uma proposição constitui uma hipótese que pode ou não ser realizada construtivamente. No caso de se ter realizado a construção correspondente, a proposição é verdadeira intuicionisticamente. Ora, nota Menger, suponhamos que um matemático intuicionista realize a construção correspondente a determinada proposição p; então, ipso fato, p é verdadeira. Mas, pode muito bem acontecer que o matemático em questão esqueça, posteriormente, como realizou a construção apropriada para provar que p é verdadeira. Daí p, que era verdadeira, deixa de o ser.
De nosso ponto de vista, no entanto, a crítica mais decisiva que se pode formular contra o intuicionismo reside no seguinte: se o intuicionismo prevalecesse, a velha ciência matemática seria completamente desfigurada. E os defensores do intuicionismo reconhecem os resultados desastrosos de suas tendências: Weyl chegou a dizer que o matemático tradicional tentou em vão escalar os céus... . Exatamente na posição singular e extravagante do intuicionismo radica o seu ponto fraco, porque uma filosofia verdadeira da matemática deve patentear e se adaptar à diretriz real das perquirições matemáticas e, a esse respeito, a maior parte da matemática de nossos dias se afasta das doutrinas intuicionistas. Uma filosofia correta e apropriada da matemática precisa estar de acordo com o desenvolvimento autêntico da matemática, o que não acontece com o intuicionismo. Logo, ele não se justifica plenamente.

O método axiomático
O criador e principal representante do formalismo é o alemão David Hilbert, um dos maiores matemáticos contemporâneos. Atualmente, na França, há um grupo de matemáticos que escrevem sob o nome de Nicholas Bourbaki e que se aproximam, bastante, das concepções hilbertianas. Citamos este fato porque a escola Bourbaki tem exercido enorme influência no ambiente matemático do Brasil.
O formalismo nasceu das vitórias alcançadas pelo chamado método axiomático. Para se estudar uma teoria pelo método axiomático, procede-se assim: escolhe-se certo número de noções e de proposições primitivas, suficientes para sobre elas edificar a teoria, aceitando-se outras idéias ou outras proposições só mediante, respectivamente, definições e demonstrações; obtém-se, dessa maneira, uma axiomática material da teoria dada; deixam-se de lado os significados intuitivos dos conceitos primitivos, considerando-os como termos caracterizados implicitamente pelas proposições primitivas. Procuram-se, então, as conseqüências do sistema obtido, sem preocupação com a natureza ou com o significado inicial desses termos ou das relações entre eles existentes. Estrutura-se, assim, o que se denomina uma axiomática abstrata.
O método axiomático é de grande importância. Em primeiro lugar, conduz à economia de pensamento: quando se estuda uma axiomática abstrata, está-se, concomitantemente, tratando de diversas teorias, a saber, todas as que se enquadram na axiomática em apreço. Em segundo, podem-se investigar, por seu intermédio, problemas relevantes, tais como a da equivalência de duas teorias, independência de axiomas, etc. Na matemática, o método axiomático vem sendo praticado há muito tempo. Já o encontramos em Euclides. Em seus Elementos, Euclides aplica o método no desenvolvimento da geometria, embora do ponto de vista lógico a obra não seja perfeita. Segundo a tradição oriunda dos Elementos, na exposição sistemática da geometria parte-se de determinadas noções tidas como claras (ponto, reta, etc) e de certas proposições admitidas sem demonstração (por exemplo: "Dois pontos distintos individualizam uma reta"). Estas proposições comumente se dividem em duas categorias: a primeira, que podemos denominar categoria dos axiomas, compõe-se de enunciados evidentes comuns a todas as ciências, como "O todo é igual à soma de suas partes"; na segunda, a categoria das proposições chamadas postulados, que exprimem propriedades estritamente geométricas (algumas vezes não tão evidentes quanto os axiomas), incluem-se enunciados como "Por um ponto dado fora de uma reta, passa no máximo uma paralela a essa reta". A obra de Euclides não é inteiramente satisfatória, entre outras razões, porque o geômetra grego em suas demonstrações lança mão, em diversas oportunidades, de suposições que não enunciou de modo explícito. Por conseguinte, Euclides não se limitou a tirar conseqüências exclusivamente das proposições primitivas que explicitou, donde sua axiomática não ser perfeita.
Com a evolução da matemática, especialmente com relação à geometria, o método axiomático tornou-se cada vez mais rigoroso, chegando a um alto grau de perfeição lógica nas últimas décadas do século passado, com Pasch, Peano, Pieri, etc. Pode-se dizer que o método adquiriu seu estado quase definitivo com a publicação do livro Fundamentos da Geometria, de Hilbert, em 1899.
Notemos que, atualmente, não há distinção entre axioma e postulado. As proposições que não se demonstram se chamam proposições primitivas, não sendo necessário nem conveniente classificá-las em axiomas e em postulados. Na realidade, hoje, as palavras "axioma" e "postulado" são sinônimas e significam proposições primitivas. Nas axiomáticas, existem apenas duas categorias de enunciados: as proposições primitivas (não interessando se evidentes ou não), aceitas sem demonstração, e as proposições demonstradas (por meio de raciocínios logicamente corretos, a partir dos postulados).
Mas o método axiomático não serve unicamente para economizar pensamento e sistematizar teorias. Ele constitui ótimo instrumento de trabalho e de pesquisa no domínio da matemática. Assim, por exemplo, grandes avanços feitos em nosso século em álgebra, em topologia e em outros ramos da matemática, encontram-se correlacionados, de modo íntimo, com o método axiomático. De um modo geral, as disciplinas dedutivas fundamentam-se, hodiernamente, de acordo com as normas do método em questão. Apenas os intuicionistas não conferem tanto valor a esse método, embora ele tenha sido empregado, com algum proveito, também em matemática intuicionista.

A concepção formalista da matemática
Vimos que o método axiomático encontra aplicação praticamente em toda a matemática, constituindo-se, hoje, na técnica básica desta ciência. O formalismo, em poucas palavras, deseja transformar o método axiomático, de técnica que é, na essência mesma da matemática.
Hilbert, ao contrário dos logicistas, não deseja reduzir a matemática à lógica. Trata de fundamentar essas ciências juntas, de acordo com o que será exposto a seguir. Ele também se opõe ao intuicionismo, procurando assentar a matemática tradicional sobre bases sólidas, ao abrigo das críticas de Brouwer e seus correligionários. Em particular, Hilbert crê que a teoria de Cantor pode subsistir, afirmando que "do paraíso que Cantor criou para nós, nada nos deverá expulsar".
Os formalistas, afirma Black, negam que os conceitos matemáticos possam ser reduzidos a conceitos lógicos e sustentam que muitas das dificuldades lógicas surgidas no seio da filosofia logicista não têm nada com a matemática. Eles vêem na matemática a ciência da estrutura dos objetos. Os números são as propriedades estruturais mais simples dos objetos e constituem, por seu turno, objetos com novas propriedades. O matemático pode estudar as propriedades dos objetos somente por meio de um sistema apropriado de símbolos, reconhecendo e relevando os aspectos destituídos de importância dos sinais que utiliza. Mas, desde que disponha de um sistema de sinais adequado, não necessita mais se incomodar com o significado dos mesmos, porque pode constatar, nos próprios símbolos, as propriedades estruturais que o interessam. Daí frisar o formalista a relevância das características formais da linguagem simbólica da matemática, que são independentes dos significados que por ventura se possam atribuir aos símbolos matemáticos. Isto não quer dizer que a matemática seja apenas um jogo sem sentido, acusação esta que comumente se faz ao formalismo. Os formalistas afirmam, apenas, que o matemático investiga as propriedades estruturais dos símbolos (e, portanto, de todos os objetos) independentemente de suas significações.
Segundo Hilbert a introdução de conceitos e princípios sem conteúdo intuitivo (elementos ideais) em matemática tem por finalidade simplificar e sistematizar as disciplinas matemáticas. Com isso, as leis da lógica clássica mantêm-se válidas, o que traz enorme simplificação para a estrutura dessas disciplinas. Todavia, semelhante modo de proceder somente será lícito se não conduzir a contradições, a absurdos. Daí, a importância extraordinária, conferida por Hilbert, às provas de não contradição das teorias matemáticas. Para Hilbert, o matemático pode estudar qualquer sistema simbólico, admitindo-se que o sistema não encerre contradições, isto é, que no sistema não se possa provar uma proposição e, ao mesmo tempo, sua negação. Hilbert emprega o termo "existência" como sinônimo de "não-contraditório".
A liberdade do matemático é completa: basta provar a consistência (ou seja, ausência de contradição) de uma teoria matemática, para torná-la inteiramente lícita. O analista alemão edificou, então, uma nova ciência — a metamatemática ou teoria da demonstração —, cuja finalidade básica seria demonstrar a consistência das diversas teorias matemáticas. Tais demonstrações far-se-iam, de modo geral, em três etapas sucessivas e que são:
a) Axiomatização: axiomatizam-se as diversas teorias lógico-matemáticas.
b) Formalização: formalizam-se as axiomáticas obtidas, isto significando que em cada uma delas os conceitos primitivos, os postulados e os conectivos, relações e princípios lógicos são substituídos por símbolos e arranjos simbólicos sujeitos a regras bem definidas, análogas às de um jogo, por exemplo, o xadrez. Uma axiomática formalizada converte-se, em resumo, numa espécie de jogo grafo-mecânico, efetuado com símbolos destituídos de significação e regulado por meio de regras determinadas.
c) Demonstração da consistência das axiomáticas formalizadas: para cada axiomática formalizada, mediante investigação de sua estrutura grafo-mecânica, procura-se provar sua consistência, evidenciando que não se poderá jamais chegar a arranjos simbólicos contraditórios, operando-se de acordo com as regras estabelecidas.
Na metamatemática, é claro, só podem ser usados métodos evidentes e construtivos, tendo por base a intuição dos símbolos. Hilbert denominou métodos finistas os métodos aceitos em metamatemática.
O caminho pelo qual Hilbert procura demonstrar a consistência dos diversos capítulos da matemática pode parecer algo sofisticado. Porém, na verdade, não se vislumbra outro modo de proceder.
Em muitos casos, a prova da consistência de uma teoria A pode ser reduzida à da consistência de outra, B, da seguinte maneira: dentro da teoria B, elabora-se um modelo de A, ou seja, escolhe-se um sistema conveniente, S, de objetos de B, de tal forma que para esse sistema sejam satisfeitas as proposições primitivas de A; S constitui, assim, um modelo da teoria A. Então, constata-se imediatamente que se B for consistente, A também o será. Por este processo, por exemplo, Beltrami e Klein provaram a consistência da geometria plana não-euclidiana de Lobatchewski, construindo um modelo da mesma por meio da geometria euclidiana; de idêntico modo, Hilbert provou que a geometria comum é consistente se a análise o for. Provas de consistência, como as que acabamos de descrever, são relativas, reduzindo a questão da consistência de uma disciplina à mesma questão referente a outra. Por esse método, pois, não se obtém segurança cabal de que a teoria que se considera é absolutamente consistente, a não ser que a teoria na qual se constrói o modelo tenha sido já reconhecida consistente, com toda certeza, ou que o modelo seja tão simples e evidente que assegure a consistência, como se dá em alguns casos muito especiais. No entanto, o método em apreço não tem aplicação geral: no caso da aritmética elementar ou da análise é impossível aplicá-lo, pois não existem teorias mais seguras e mais simples nas quais se possam construir os modelos apropriados correspondentes.
Também não se pode recorrer à intuição como critério geral para legitimar uma teoria; ela só ajudaria enquanto não fossem introduzidos os elementos ideais, na acepção de Hilbert, o que se dá com a maior parte da matemática.
Finalmente, não podemos apelar para o mundo físico na esperança de provar a consistência das disciplinas dedutivas. A matemática teve origem empírica, mas, como hoje se apresenta, situa-se inteiramente além dos fatos empíricos, desenvolvendo-se em plano abstrato e formal. Nessa direção, não se pode dar nenhum passo.
Por conseguinte, pelo menos no tocante às disciplinas matemáticas fundamentais, como a teoria dos conjuntos, a aritmética elementar e a análise, não existe outro meio de se provar a consistência, a não ser de conformidade com os preceitos hilbertianos.

Os teoremas de Gödel
Hilbert e seus discípulos atacaram o problema da demonstração de consistência das diversas partes da matemática e conseguiram realizar progressos interessantes. Por volta de 1930, tudo parecia indicar que a metamatemática formalista seria coroada de êxito, atingindo o seu objetivo. Dentre as questões basilares que naquela época preocupavam os hilbertianos destacam-se, como principais, os problemas da consistência da aritmética e da análise, em especial o primeiro.
Foi então que, em 1931, um jovem lógico-matemático, Kurt Gödel, publicou resultados revolucionários que abalaram profundamente o formalismo. Esses resultados podem ser enunciados, de modo aproximado, assim:
Teorema I. Toda axiomática consistente da aritmética é incompleta.
Uma axiomática diz-se completa, quando qualquer enunciado S, formulável nesta axiomática, é tal que S ou sua negação é demonstrável (na axiomática em apreço); em caso contrário a axiomática é incompleta. O presente teorema de Gödel significa, portanto, que existem proposições aritméticas tais que nem elas, nem suas negações, são demonstráveis na axiomática da aritmética que se adotar. Essas proposições são chamadas indecidíveis na axiomática considerada. Logo, em qualquer axiomática consistente da aritmética existem sentenças indecidíveis.
Como uma proposição e sua negação constituem enunciados contraditórios, uma delas é necessariamente verdadeira (desde que se admita o princípio do terceiro excluído). Em consequência, existem sentenças aritméticas verdadeiras, formuláveis em dada axiomática da aritmética, mas que não são demonstráveis nessa axiomática, e isto se verifica qualquer que seja a axiomática em questão. Frisemos, pois, que este fato não constitui imperfeição deste ou daquele sistema consistente de axiomas, porém é inerente a qualquer um deles.
Teorema II. A consistência de qualquer axiomática consistente da aritmética não pode ser demonstrada nessa axiomática.
Este teorema nos diz que a prova de ausência de contradição de uma axiomática da aritmética não pode ser realizada apenas com os recursos dessa axiomática ou, de modo equivalente, que a demonstração de que dada axiomática da aritmética é consistente só pode ser efetuada com auxílio dos recursos de uma teoria mais "forte" (ou seja, é impossível formalizar uma prova de consistência de qualquer axiomática da aritmética, tendo por base tão somente essa axiomática). Os teoremas de Gödel evidenciam que o método axiomático está sujeito a grandes limitações. Além disso, como uma discussão detalhada mostraria, o segundo teorema implica, praticamente, na impossibilidade de uma demonstração finitista da consistência da aritmética (ou de qualquer teoria que encerre a aritmética ordinária como "subteoria"), o que destrói a maior parte das aspirações hilbertianas.

Crítica do formalismo
Os trabalhos de Gödel patentearam que as demonstrações metamatemáticas de consistência, como as queria Hilbert, são geralmente impossíveis. Em virtude da enorme importância que o formalismo confere às demonstrações de consistência, verificamos que Gödel quase destruiu o corpo de doutrina hilbertiano. A posição formalista, depois das indagações de Gödel, tornou-se pouco segura: nada pode impedir que o matemático formalista estude os seus sistemas simbólicos, mas também nada nos garante que ele não encontre, de vez em quando, contradições em suas transformações simbólicas. Em síntese, o método axiomático é técnica de valor, embora se tenha mostrado incapaz de se converter em fundamento conveniente da matemática, pelo menos dentro dos moldes hilbertianos.
Mas esse não é o único reparo a que está exposto o formalismo. Vimos que Hilbert admitia a existência de elementos ideais nas disciplinas matemáticas, com a finalidade precípua de sistematizá-las e simplificá-las. Mas seria imprescindível, para a concepção hilbertiana situar-se além de críticas sérias, que se tivesse certeza de que os enunciados formulados em termos intuitivos (isto é, com conteúdo intuitivo), obtidos através de raciocínios utilizando elementos ideais, fossem (intuitivamente) verdadeiros. Este constitui um problema difícil, sendo impossível debatê-lo aqui. Porém, a simples existência de semelhante questão lança ainda mais dúvidas sobre a plausibilidade da tese formalista.
Outra crítica comum ao formalismo consiste em se notar que os hilbertianos deram pouca importância ao significado dos símbolos matemáticos e que uma filosofia correta da matemática não pode olvidar esse ponto. Bertrand Russell chegou a asseverar que "os formalistas se assemelham a um relojoeiro que, de tanto se preocupar com a aparência de seus relógios, esqueceu que a finalidade dos mesmos é marcar tempo e descurou dos mecanismos."
Apesar de tudo, no entanto, a corrente formalista contribuiu notavelmente para o aperfeiçoamento da lógica e para o progresso das investigações sobre os fundamentos da matemática. Aliás, os próprios teoremas de Gödel foram descobertos mediante processos metamatemáticos. Não obstante as limitações que lhe são inerentes, a metamatemática tem evoluído bastante e são vários os resultados de suma importância por ela alcançados.

“Todo bom matemático é ao menos metade filósofo, e todo bom filósofo é no mínimo metade matemático”. Frege

“Deus existe, uma vez que a matemática é consistente, e o diabo existe, uma vez que tal consistência não pode ser provada”. Weyl

“Matemática é o assunto no qual nós nunca sabemos sobre o que estamos falando nem se o que estamos dizendo é verdade”. Russell

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