domingo, 18 de maio de 2008

Platão e Aristóteles - Jairo José da Silva

SILVA, Jairo José da. Filosofias da matemática. São Paulo: Editora UNESP, 2007.

Enquanto para Platão as entidades matemáticas constituem um domínio objetivo independente e auto-suficiente, ao qual temos acesso pelo entendimento (diánoia), para Aristóteles os entes matemáticos têm uma existência parasitária dos objetos reais – uma vez que objetos matemáticos só existem encarnados em objetos reais – e só nos são revelados com o concurso, ao menos em parte, dos sentidos. Para Platão, o mundo real apenas reflete imperfeitamente um mundo puro de entidades perfeitas, imutáveis e eternas – os conceitos matemáticos entre elas. Para Aristóteles, o mundo sensível é a realidade fundamental, os entes matemáticos são “extraídos” dos objetos sensíveis por meio de operações do pensamento, e os conceitos matemáticos são apenas modos de tratar o mundo real. De um lado o racionalismo de Platão, que atribui à razão humana o poder de penetrar nos domínios supra-sensíveis da matemática, e o seu realismo ontológico transcendente, que afirma a existência independente dos entes matemáticos num reino fora deste mundo; de outro, o empirismo de Aristóteles, que se recusa a dar morada aos entes matemáticos em qualquer outro reino que não o deste mundo, e o seu realismo ontológico imanente, que garante, ele também, uma existência aos objetos matemáticos independentemente de um sujeito, mas não de outros objetos do mundo empírico. Ambos comungam da tese que a verdade matemática é independente da ação de um sujeito – a tese do realismo epistemológico – mas discordam quanto ao que deve fazer o sujeito para revelar essa verdade. Enquanto para Platão basta o entendimento para que ela nos seja desvelada (e a metáfora de uma verdade sob véus cabe bem a Platão), Aristóteles deve contar também, e não de modo meramente acidental, com os sentidos, se bem que não possa confiar apenas neles (contra teses empiristas mais radicais). Para Platão, o mundo empírico é uma degradação do real propriamente dito, e a matemática em nada sofreria se o mundo que experimentamos pelos sentidos não existisse; para Aristóteles, a destruição desse mundo seria concomitantemente a destruição dos domínios e da verdade matemáticas. Enquanto Aristóteles é o filósofo com “os pés no chão”, Platão é o filósofo “com a cabeça nas nuvens”; ambos nos ofereceram modos paradigmáticos de se entender a matemática, a natureza de seus objetos e dos seus domínios, e suas relações com o sujeito do conhecimento e o mundo empírico.

Segundo Platão os objetos matemáticos preexistem à atividade matemática, à qual cabe apenas "ascender" até eles e estudá-los. Tanto os objetos quanto as verdades matemáticas têm existência independente de nós (realismo ontológico e epistemológico). Como podemos conhecê-los? A resposta de Platão é: pelo intelecto. Por isso Platão critica a linguagem construtiva dos geômetras. Os sentidos podem apenas nos sugerir, conduzir nossa atenção para as entidades perfeitas; conhecê-las, porém, é tarefa exclusiva da inteligência. Platão é o exemplo acabado do racionalista em filosofia.As verdades matemáticas expressam simplesmente relações universais e imutáveis entre as formas matemáticas. Nós as conhecemos ou podemos conhecer a priori, isto é, independentemente dos sentidos, por meio do entendimento. E mesmo as verdades que desconhecemos no momento estarão sempre à disposição do nosso intelecto com seu valor de verdade inalterado. Dificilmente poderíamos exagerar a importância da matemática no pensamento de Platão e o papel que ele lhe reservava na estruturação do mundo, no esquema geral do conhecimento e na educação. Ainda mais que uma filosofia da matemática, Platão nos legou um estereótipo, a imagem da matemática como uma ciência de um domínio fora desse mundo ao qual ascendemos pelo pensamento é ainda a "filosofia" natural dos matemáticos.

Aristóteles não admitia a existência de um reino transcendente de Idéias e formas matemáticas. As formas matemáticas existiriam apenas como aspectos de objetos e coleções de objetos reais, notas características desses objetos cuja existência depende da existência dos próprios objetos. Não há uma Idéia ou uma forma transcendente de triângulo ou de dualidade, apenas objetos triangulares e pares de objetos. A matemática, para Aristóteles, não tem um domínio distinto do de qualquer ciência empírica, ela se ocupa dos objetos deste mundo considerando-os exclusivamente do aspecto formal matemático, vê neles apenas sua forma geométrica ou aritmética. Nas palavras do próprio Aristóteles: "De fato, a matemática se ocupa apenas com as formas: ela não tem a ver com os substratos; pois ainda que as propriedades geométricas sejam propriedades de um certo substrato, não é enquanto pertencentes ao substrato que ela as mostra". Essa sentença contém o essencial da filosofia da matemática de Aristóteles. Para ele os objetos matemáticos não têm existência separada dos objetos empíricos, são apenas aspectos deles. Um objeto empírico é um objeto matemático na medida em que nós podemos considerá-lo do ponto de vista de seu aspecto matemático, ou seja, como um objeto matemático. Para Aristóteles, a matemática estuda objetos sob certos aspectos apenas, uma bola como uma esfera, um par de dois livros como dois. Ao fazer isso, abstraímos da bola a sua forma geométrica e da coleção de livros a sua forma aritmética. Visto assim, Aristóteles é um empirista em ontologia, pois, para ele, apenas os objetos dos sentidos existem realmente, com um sentido pleno de existência. E quanto aos números tão grandes que não podem numerar nenhuma coleção real e às formas geométricas esdrúxulas como o miriágono (polígono de dez mil lados) que não podem dar forma a nenhum objeto real? Estes objetos matemáticos, ainda que fictícios, por serem construtíveis a partir de formas reais, são possíveis na realidade. Assim, numa compreensão mais ampla, a matemática, segundo Aristóteles, trata não apenas de formas abstratas atuais, mas também de formas simplesmente possíveis. E para Aristóteles, se o matemático afirma, por exemplo, que existem infinitos números, isso só pode ser entendido em termos de um infinito potencial, isto é, da possibilidade ilimitada em princípio de geração de novos números. Como a entendo, a abstração aristotélica, a operação pela qual consideramos objetos e coleções de objetos empíricos como objetos matemáticos, comporta também um elemento de idealização. Tratar uma bola como uma esfera é uma operação complexa: abstrai-se da bola a sua forma, isto é, desconsideram-se as diferenças entre ela e a esfera matemática perfeita (determinada pela sua definição como um lugar geométrico de pontos espaciais eqüidistantes de um centro). Uma esfera matemática perfeita é, assim, a idealização de um aspecto da bola, e só assim ela existe. A definição apenas, em nenhum sentido, cria qualquer coisa; não é por termos uma definição de um objeto que ele existe.
E as asserções verdadeiras da matemática, de onde, segundo Aristóteles, elas tiram a sua verdade? Consideremos este enunciado: a soma dos ângulos internos de um triângulo x qualquer é igual a dois retos. Segundo Aristóteles, a variável x nessa asserção matemática tem por domínio os objetos sensíveis, não as formas platônicas ideais, que, como vimos, ele não via como objetos independentes. Assim, da perspectiva aristotélica, o enunciado correto deve ser este: (1) a soma dos ângulos internos de um objeto triangular qualquer é igual a dois retos. Ou ainda, equivalentemente: (2) a soma dos ângulos internos de um objeto triangular qualquer, na medida em que ele é objeto triangular, é igual a dois retos. Como podemos demonstrar este teorema? Tomamos um objeto triangular qualquer, por construções verificamos, empiricamente ou na imaginação, não importa, mas, de algum modo, por constatação ad oculos, que os ângulos internos desse objeto somam efetivamente dois retos (considerando que os aspectos matemáticos desse e de outros objetos envolvidos nas construções - por exemplo, as formas geométricas e os ângulos - são instâncias perfeitas, não apenas aproximadas, das suas categorias, como caracterizadas pelas suas definições). Note que até aqui mostramos apenas que o objeto triangular escolhido tem a propriedade em questão. No entanto, podemos, por análise das constuções levadas a cabo, verificar que as peculiaridades do objeto escolhido, outras que sua triangularidade exclusivamente, não desempenham nenhum papel na demonstração de que o objeto em questão satisfaz a propriedade dos ângulos internos. Logo, por generalização, qualquer outro objeto triangular tem essa mesma propriedade, isto é, a triangularidade está subordinada a ela. Assim, a demonstração do teorema envolve verificação empírica (ou, se usamos apenas a imaginação, o esboço mental de uma verificação empírica, que também conta como uma verificação empírica, já que a imaginação, nesse caso, é apenas reprodutiva: o objeto triangular imaginado é a imagem de um objeto real possível) para mostrarmos que um particular objeto tem a propriedade requerida, e reflexão ou análise lógica, isto é, a razão para fundamentar a generalização.
Um empirista radical irá dizer que as verdades da matemática são, como as verdades das ciências empíricas, justificadas por generalização a partir da experiência (indução enumerativa). Mas não Aristóteles. Ele admitia a validade do método matemático de sua época, o de demonstrações, em geral construtivas, que estabelecem seus resultados com universalidade e necessidade; assim, apesar de empirista em questões de ontologia - aquelas concernentes aos objetos matemáticos - ele parece admitir um misto de racionalismo e empirismo em questões epistemológicas - as que dizem respeito à verdade matemática.
O tratamento aristotélico da matemática tem como ponto forte a explicação da aplicabilidade da matemática ao mundo empírico, sem a necessidade de apelar, como Platão, para relações de participação entre Idéias e formas e a relação de semelhança entre essas e os objetos empíricos. Para Aristóteles a matemática aplica-se ao mundo sensível simplesmente na medida em que é só uma maneira de falar dele.

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